A Lei Maria da Penha e a Sua Relação com o Direito do Trabalho
por Hyago Hayalla Rodrigues Calixto
Dentro de poucos dias a Lei Maria da Penha – Lei 11.340/2006 – completará dezessete anos. Ao longo desse período muito se falou sobre as implicações da legislação no âmbito da justiça criminal. Contudo, ainda não é expressiva as análises acerca da sua relação com o direito do trabalho.
É inegável que a Lei Maria da Penha tem como objetivo a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Mas, além disso, ela também estabeleceu medidas de assistência e proteção às mulheres nessas situações de vulnerabilidade.
E é nessa esteira – medidas assistenciais e protetivas –, que a Lei 11.340/2006, em seu art. 9º, § 2º, inciso II, trouxe a previsão de que o Juiz tem o papel de assegurar à mulher vítima, como uma das formas de preservar sua integridade física e psicológica, a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por um período de até seis meses.
A situação, como se nota, faz nascer uma espécie de estabilidade decorrente de uma decisão judicial prévia, decisão essa que não é proferida pela justiça do Trabalho, mas sim pela Justiça Comum, o que traz contornos mais complexos para a questão.
É perceptível que a lei fixa o período de manutenção do vínculo de trabalho por até seis meses, no entanto, sabe-se que, infelizmente, muitas das vezes os processos não chegam ao seu fim nesse período e, muito menos a situação de risco da mulher se encerra nesse lapso temporal. Diante disso, é possível que a interrupção do contrato de trabalho, assim como ocorre com as demais medidas protetivas, seja prorrogada tantas vezes quantas forem necessárias para que a mulher sinta-se segura e protegida.
Em que pese, como dito alhures, a manutenção do vínculo de emprego estar elencada na Lei 11.340/2006 como uma das medidas protetivas, fato é que a legislação quedou-se omissa acerca de quem será o responsável pelo pagamento das verbas salariais durante esse interregno. Eis aqui uma das principais relações interdisciplinares entre a Lei Maria da Penha e o Direito do Trabalho.
Se o intuito da legislação foi estabelecer medidas assistenciais e protetivas às mulheres em situação de violência doméstica, é inegável que caso não haja o pagamento dos salários no período do afastamento, a mulher será duplamente penalizada, eis que sua integridade física será afrontada e, além disso, seu sustento será retirado.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a vítima de violência doméstica não pode arcar com os danos resultantes da imposição de medida protetiva em seu favor, sob pena de, mais uma vez, ser penalizada por algo que não teve nenhuma culpa.
No entanto, também não parece razoável que a responsabilidade desse pagamento seja transferida ao empregador, posto que além de não ter nenhuma culpa pelo fato, em médio ou longo prazo, poderia se recair em mais uma odiosa forma de discriminação da mulher no mercado de trabalho.
E, diante do vazio legislativo, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA fora instado a analisar a questão. Foi somente em 20 de agosto de 2019, isso é, quase treze anos após a publicação da Lei, que no julgamento do RECURSO ESPECIAL n. 1.757.775/SP, sob a relatoria do MINISTRO ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ, restou esquadrinhada a questão da seguinte forma:
a. a competência para a imposição de medida protetiva de manutenção de vínculo trabalhista é do Juiz da Vara de Violência Doméstica, ou do Juízo Criminal, em razão de o afastamento não advir de relação de trabalho, mas sim de situação emergencial, como já adiantado anteriormente;
b. cabe ao empregador o pagamento dos quinze primeiros dias de afastamento da empregada vítima de violência doméstica e familiar, ficando a cargo da Autarquia Previdenciária o pagamento do restante do período de afastamento estabelecido pelo juiz.
Ainda que a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça não seja vinculante, que inexista uma jurisprudência consolidada acerca de quem será responsável pelo pagamento dos salários ao longo do período de afastamento da mulher, bem como inexista legislação expressa acerca do tema, fato é que o caput do art. 9º da Lei 11.340/2006 traz a noção de que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada conforme os princípios e diretrizes previstos em diversas leis, normas e políticas públicas de proteção, o que vai ao encontro da tese exposada pelo MINISTRO SCHIETTI, no sentido de retirar do empregador a responsabilidade pelo pagamento das verbas de natureza salarial e delegá-la ao Estado.
Uma outra relação entre a Lei 11.340/2006 e o Direito do Trabalho nasce com a edição da Lei Complementar 150/2015, que dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico.
Isso porque o inciso VII do parágrafo único do art. 27 faz expressa menção, como motivo para a rescisão indireta do contrato de trabalho, a prática, pelo empregador, de qualquer uma das formas de violência doméstica e familiar contra mulheres elencadas na Lei Maria da Penha.
Inegável, portanto, que a Lei Complementar enquadrou o empregador como possível sujeito ativo dos delitos por motivação de gênero, diante da amplitude do conceito de unidade doméstica previsto no art. 5º da Lei 11.340/2006.
Há, contudo, significativa controvérsia acerca do termo “esporadicamente agregadas” contido no retrocitado artigo, no sentido de perquirir se a norma poderá incidir também para as situações de prestadores de serviços domésticos que não têm direito às verbas trabalhistas, como por exemplo, as diaristas e, portanto, poderia nascer a possibilidade do ajuizamento de uma ação indenizatória lastreada na proteção oriunda da Lei Maria da Penha, que traz como uma das formas de violência a moral. Ainda, cabe ressaltar que a Lei 14.188/2021 introduziu no Código Penal o crime de violência psicológica contra a mulher (art. 147-B), de modo que o empregador, quando agressor, também poderá ser responsabilizado na seara penal acerca de suas condutas violentas contra a empregada mulher.
Outrossim, se a conduta for praticada por outro empregado da empresa, no âmbito penal, em que a responsabilidade é subjetiva, o empregador, a princípio, não responderá pela conduta daquele. Contudo, em eventual reclamatória trabalhista intentada pela empregada, o empregador poderá ser condenado a indenizar a exempregada, em razão da principiologia da responsabilidade civil.
Fato é que a jurisprudência trabalhista é inexistente acerca do tema, razão pela qual, como muito comum no Direito, a resposta acerca dessa possibilidade nascerá da análise casuística, não existindo, portanto, uma fórmula pronta para essas situações.
Diante do que fora exposto, é possível concluir que a violência doméstica com motivação de gênero, apesar de pouco debatida, também repercute nas relações de trabalho, seja na sua relação com as medidas protetivas e assistenciais, seja na sua relação com a possibilidade de o empregador ser o sujeito ativo das condutas típicas elencadas na lei, ou seja como fundamento para a condenação do empregador, quando também agressor, ao pagamento de indenização por danos morais.