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Parecer ACP - Fato do Príncipe em face da pandemia pelo COVID-19

27

mai

Parecer ACP - Fato do Príncipe em face da pandemia pelo COVID-19

por Sérgio Rocha Pombo

De forma absolutamente rápida e de propagação sem precedentes na história recente do país a população brasileira se viu atingida pela contaminação do COVID-19, e, por conta disso está padecendo das suas cruéis e imprevisíveis consequências.

Infelizmente, as medidas de isolamento social para evitar a disseminação do novo coronavírus, está inviabilizando a continuidade de alguns negócios ocasionado a necessidade de demissão muitos empregados.

Diante deste cenário triste e desolador, surge o seguinte questionamento: o empregador poderá exigir que o Poder Público seja responsabilizado pelo pagamento das verbas rescisórias de seus empregados?

A resposta a esta pergunta não é simples e envolve bastante prudência de modo a extrair a interpretação que melhor se amolde aos contornos legais pertinentes ao caso. É isso que nos propomos a desenvolver através do presente artigo.

O QUE É DO FATO DO PRÍNCIPE?

A teoria do Fato do Príncipe ou Factum Princpis com origem no direito administrativo francês, até poucos dias era desconhecida da maioria dos empresários, todavia, ganhou notoriedade a partir do dia 27/03/2020, quando o presidente da república, Jair Bolsonaro, afirmou em entrevista que: “prefeitos e governadores que decretaram fechamento do comércio por causa da pandemia do coronavírus terão que pagar indenização ao trabalhador em razão da paralisação”.  

Por conta desse fato as discussões agora são direcionadas sobre a pertinência desta declaração frente a teoria do Fato do Príncipe.

Dispõe o artigo 486, caput, da CLT, que, “No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”.

Para o Direito do Trabalho, entende-se por fato do príncipe, espécie do gênero força maior, a paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade.

Comumente, exige-se como requisitos para a ocorrência do fato do príncipe que o evento seja inevitável; que haja nexo de causalidade entre o ato administrativo e a paralisação do trabalho; que impossibilite absolutamente a continuação do negócio; e, por fim, que o empregador não concorra para a sua ocorrência.

PANDEMIA X FATO DO PRÍNCIPE

Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou que o surto do novo coronavírus (COVID-19) surgido na China constituía uma emergência de saúde pública de importância internacional, mais alto nível de alerta conforme o Regulamento Sanitário Internacional.

A pandemia do coronavírus afetou o direito vigente e as relações jurídicas preexistentes. Medidas legislativas e administrativas, bem como decisões judiciais passaram a adotar soluções inovadoras para disciplinar situações nunca antes vistas.

O fundamento que contempla a obrigação de indenizar por danos decorrentes do fato do príncipe reside no fato de que a Administração Pública não pode causar prejuízos aos administrados, ainda que por atos lícitos de alcance geral, na defesa dos interesses da coletividade.

Não se pode deixar de realçar que, sendo o fato do príncipe modalidade singular de motivo de força maior, a ele também se deva aplicar a regra do art. 501, § 1º, da CLT: “a imprevidência do empregador exclui a razão de força maior”.

Assim sendo, não se pode vislumbrar factum principis quando o empregador concorre para a paralisação do trabalho, agindo de modo ilícito, irregular ou simplesmente culposo.

Na hipótese, a ação estatal poderá se configurar como ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou ainda pela promulgação de lei ou resolução, o que transfere a responsabilidade pelo pagamento de uma indenização para o Poder Público.

ALCANCE DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO

Inicialmente, observa-se que não haverá factum principis se o ato da autoridade não impedir absolutamente a continuidade da atividade empresarial afetada, apenas tornando-a mais difícil ou onerosa, como se deu no caso da presente pandemia.

De igual modo, não há que se falar em factum principis caso o devedor da obrigação não tenha experimentado todas as possibilidades que lhe foram oferecidas para superar ou remover a resistência da Administração Pública.

Assim, caso o Poder Público assuma parte ou a totalidade das obrigações salariais durante o período de calamidade, como possibilitou a MP 936/2020, e, ainda assim, o empregador dispensar o empregado, não poderá o primeiro invocar o Fato do Príncipe, pois lhe foi oferecida medida para superar o ato administrativo.

É preciso apontar que as determinações de isolamento social e fechamento de alguns estabelecimentos tiveram como propósito evitar que a população em geral ficasse exposta ao risco de contração da COVID-19.

Todos os brasileiros foram de algum modo afetados pelas medidas e tal situação não derivou do poder discricionário estatal, mas de uma ordem internacional da Organização Mundial da Saúde. Portanto, é possível argumentar que não há que se falar em factum principis quando a ação do poder público tem por objetivo resguardar o interesse de toda população.

Para o caso de uma pandemia que afeta indistintamente toda a sociedade como algo extraordinário e irresistível, não parece haver espaço jurídico para o reconhecimento responsabilidade do Estado com base na teoria do fato do príncipe.

É que no caso em tela não há uma escolha propriamente discricionária da Administração Pública quanto a proceder ou não à suspensão, mas um autêntico dever vinculado a obediência ao texto constitucional que preconiza a saúde como “direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196)”.

Logo, na hipótese em tela, os regramentos estaduais e municipais nada mais fazem do que cumprir estritamente as normas que concretizam e garantem o direito fundamental à saúde (CF, art. 196), inclusive, na perspectiva trabalhista, pela redução dos riscos inerentes ao trabalho (CF, art. 7º, XXII), o que afasta o reconhecimento de fato do príncipe.

PAGAMENTO DAS VERBAS RESCISÓRIAS

Sobre o pagamento das verbas rescisórias, caso se vislumbre a ocorrência do fato do príncipe a obrigação do Poder Público abrange unicamente os valores resultantes da indenização decorrente da rescisão do contrato de trabalho, ou seja, a indenização compensatória de 40% do FGTS e a indenização do artigo 479 da CLT, para o caso de contratos por prazo determinado.

As demais parcelas rescisórias são de responsabilidade do próprio empregador, porque relacionadas a fatos geradores anteriores à própria ruptura do vínculo.

Importante destacar que as verbas derivadas do contrato de trabalho sem origem na rescisão involuntária não poderão ser contempladas na condenação estatal com fulcro no art. 486 da CLT.

ASPECTOS PROCESSUAIS

Aqueles empresários que optarem pela rescisão do contrato de seus empregados com base na teoria do fato do príncipe, deverão estar preparados para longas disputas judiciais, pois o trabalhador prejudicado virá buscar a reparação diretamente em face do seu empregador, sendo que este é que irá imputar, no momento da apresentação da defesa, a responsabilidade da demissão do seu empregado baseado em ato proveniente da Administração Pública.

No que diz respeito ao ônus da prova sobre a impossibilidade econômica da manutenção da empresa será preciso apurar se, de fato, se o empreendimento se tornou economicamente inviável.  Tal situação passa não somente pela análise do momento de crise decorrente da pandemia, mas também do levantamento financeiro da situação pretérita do empreendimento e a existência ou ausência de alternativas ao fechamento das portas em cada caso concreto. Neste caso o ônus de provar que a ruína financeira do empreendimento ocorreu por ato da autoridade pública é totalmente do empregador.

CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, podemos concluir o seguinte:

As normas administrativas de suspensão de funcionamento de estabelecimentos refletem a necessidade de isolamento social diante da facilidade de propagação do novo coronavírus, todavia, vem causando impacto na viabilidade econômica dos empreendimentos empresariais e nas relações de emprego.

Fica afastada a hipótese de fato do príncipe quando não existe uma escolha propriamente discricionária da Administração Pública quanto a proceder ou não à suspensão de funcionamento de estabelecimentos, mas sim um autêntico dever vinculado ao ordenamento jurídico brasileiro, cujas normas são impostas pela Constituição, que preconiza a saúde como direito de todos e dever do Estado.

A pandemia em foco corresponde a um acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador e para a realização do qual este não concorreu. Não obstante, é necessário avaliar, no caso concreto, o porte e a saúde financeira de cada empresa, se a suspensão temporária das atividades pode afetar substancialmente ou ser suscetível de afetar a situação econômica e financeira da empresa, para fins de configuração da força maior.